Meebo Bar

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Boa Noite

Eu tinha 12 anos. Nos reuníamos ao redor do meu avô em um círculo perfeito. Era uma cerimônia semanal. Costumava durar entre uma e três horas, e quando percebíamos que podia levar mais tempo que isso, pedíamos para continuar na semana seguinte.
Era relatado da boca do pai de nossos pais as histórias que ele conhecia sobre a guerra, nas quais, por acaso, vovô ouviu-as pela primeira vez de seu próprio pai. Nosso bisavô foi um bravo militar, que morreu pelo chão que pisamos todos os dias. Já tive mais noção patriota, mas tanto quanto estes domingo nublados foram se tornando mera rotina, esse sentimento se foi perdendo. Entretanto ainda sonho com a imagem do meu antepassado sendo pulverizado com a mina escondida. Não era uma imagem rápida. Os poros se dilatando milimetricamente até os órgãos não serem mais comprimidos, mas sim expandidos. O sangue voando tentando encontrar o local que dantes pertencia, mas não podia ser impedido pela gravidade. Eu via ainda o coração querendo dar a última pulsação. Não deu tempo. E depois apareciam os outros soldados, correndo armados e cobertos pelo sangue e partes do meu bisavô. Eles nem olharam para trás. Um tiroteio. Ele gostaria de ter participado pelo menos desse último antes de explodir.
Mas nem tudo se baseava em sua morte. Os combates. Ah sim, os combates! Eram ainda mais assustadores que a mina escondida. Eram escritas cartas detalhadas a respeito disso, o que é raro. Li uma vez algumas duas. Passei três semanas sem dormir direito. Meu primo de 17 anos leu todas. Não fala sobre o assunto, e hoje em dia já não participa da roda, mas escuta da cozinha, com os olhos fechados, o vovô falando. Vai ter que se alistar ano que vem. Pretende engordar até lá para tentar não ser admitido.
Minha avó disse que essa infância fez meu avô amadurecer muito rápido, e é isso que ele quer de nós, os netos. Sendo essa a intenção ou não, molhei a cama muitas vezes.

sábado, 12 de junho de 2010

Ateliê

A água, que dantes era transparente e límpida, tornou-se azul, preparando o pincel aguado para receber mais um borrado de tinta. A tela, ainda branca, aspirava ter logo alguma cor e ficar pendurada na sala da parede da casa de alguém. "Ela anseia isso..." pensou a pintora.
Quando deixou finalmente a tinta percorrer o tecido, fechou os olhos. Gostava de pintar com eles fechados para deixar os sentimentos tomarem conta do corpo. Assim também não precisaria se preocupar se a linha estava reta ou não. Era arte. Era dela. Era ela.
Deixou a vida tomar conta de suas mãos, desconcentrando a raiva que tinha guardada e passando-a para a tela. Mais do que relaxante, era uma saída.
Abriu os olhos somente para mudar a cor do pincel. Amarelo. Sentiu novamente o momento.
Rosa, Preto, depois roxo e, para terminar, laranja. A tela parecia não ser o suficiente. Queria pintar para sempre e não precisar passar na mercearia para comprar nada.
Empurrou os quadros pendurados e fez flores na parede. Também não era o bastante. O chão, o armário, o vaso sanitário, o lençol da cama, o teto... Até acabar a tinta e a raiva. Precisava ir na mercearia.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Uma corrida de crianças

O calor já estava a dar cabo de mim. O ar era áspero e o vento uma raridade. Podia sentir meus pulmões ardendo diante da respiração quente. O suor caminhava pelo meu rosto como eu deveria fazer diante do asfalto vermelho, mas tudo que eu pensava era numa Coca-Cola gelada com uma rodela de limão flutuando. O treinador e meu agente estavam do outro lado da arquibancada, gritando como loucos que eu ainda estava em terceiro.Precisava do título mais que ninguém. Precisava de dinheiro. Não só eu como eles.
Mas sentia as coxas espalmadas e doloridas. As solas dos pés doíam toda vez que pisava no chão. 100 metros era muito naquele momento, uma distância que há 2 anos atrás parecia uma corrida de crianças. E o que nesses anos me fez de diferença? Ora, eu era apenas o melhor corredor do mundo na categoria. Acabei de decaindo nesse título. Pensei que já não precisava treinar. Ahh, que amarga ironia! Aos poucos, com a alimentação irregular, meu corpo não ficou no mesmo estado, me fazendo pensar em Coca-Cola no meio de uma corrida.
E pensando nessas coisas da vida, tentando não prestar atenção nas dores, que me vi passando a faixa branca do chão e as pessoas gritando vindo de encontro.
Quase chorei quando derramaram uma garrafa d'água em minha cabeça.
Olhando e pensando no futuro vejo novamente aquela luz chamada oportunidade que havia quando era miúdo.