Meebo Bar

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

ERROR 404: cliche not found

- É pedir demais um "... e viveram felizes para sempre"?!
- Pelo que tudo indica, sim.
- Oh, muito obrigada.
- Eí, estou na mesma situação, ok?
A garota nº 2, a de cabelo preto, pousou o seu copo em cima da mesa do bar. A bebida era desconhecida até mesmo pra ela, mas era boa. A sua amiga, uma loira claramente postiça, vestia um top muito prateado e chamativo.
- Eí, não quer ligar uns piscas-piscas de natal aí? Não conseguem te ver na Lua...
- Cala a boca!
E assim, se xingando e batendo, foram saindo do bar e perambulando pela rua abaixo, levando atrás de si próprias suas carências amorosas. O "dia" não podia começar sem álcool no sangue. A loira sempre conseguia trabalho primeiro, por poder ser avistada há quilômetros de distância, porém, sempre foram serviços baratos e pequenos. A morena, sempre mais reservada, vestia-se bem mesmo com roupas baratas. Engatava os mais ricos da região, e tinha a façanha de manter em supremo segredo todos os seus clientes. Mulheres iguais no sentido, diferentes no objetivo. Sempre saíam para uns copos antes do horário de trabalho começar, mas assim que o breve momento de razão acabava, ia cada uma para o seu canto do quarteirão, atingir as suas metas. Adoraria dizer que numa noite mágica, a vida dessas mulheres mudou e tiveram sucesso na vida, mas o clichê só funciona nos filmes.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Whisky, Mini Cooper and Starbucks

Você sabe que está tendo uma péssima semana quando os oito copos cafés Starbucks por dia e o Whisky antes de dormir suas 2 horas por noite já não fazem efeito. Você sabe que está trabalhando demais quando não se lembra da última vez que viu a luz do dia, nem quando passou maquiagem, ou lavou a louça. Você sabe que está estressada quando quebra a máquina de café com um murro e faz um curativo usando a fita cola do escritório para não ter que ir ao hospital. Por isso o Starbucks. Mas agora, depois de 80 horas nesse estado, entreguei o meu projeto e posso ir pra casa sem um copo de café ou Whisky na mão. Então posso dormir 10 horas seguidas, acordar e passear num parque depois de passar uns bons minutos lavando a louça e me maquiando.
Mas vamos a uma coisa de cada vez. Primeiro, encontrar a chave do carro. Só para efeitos de curiosidade (ou caso você encontre as chaves) tenho um Mini Cooper S preto, desses bem britânicos. Debaixo dos papeis, atrás do monitor, em cima da bancada... Ah! Dentro da bolsa. Já está!
Despedir-me do porteiro. Como era o seu nome?
- Adeus... - não me veio nenhum nome a cabeça - ... Até quando resolverem me incomodar de novo!
- Até logo, senhorita... - Pelo jeito também não se lembrava do meu nome. Menos mal. - Banes. - Ele lembrou. Oh, fuck.
Apressei o passo para fingir que não ouvi.
Sã e salva no meu carro. Agora, como era mesmo? Pisar na embraiagem e virar a chave. Engatar a primeira e ir soltando bem devagar com os pés. Acelerador em conjunto. Olhar pelo retrovisor às vezes. Freio. Mover os pés do lugar, como uma dança. Mal consigo esperar para tudo isso virar uma rotina e as coisas serem automáticas, como todos os motoristas do mundo dizem. Só sei que nesse momento tudo isso está me deixando louca. Muitos detalhes e muitos milímetros. Se ao menos tivesse despachado o projeto no mês passado, não teria ficado tão perto da data final. Aliás, se eles não tivessem adiantado a data final... Se a Mariana não tivesse ficado grávida... Eu também deveria ter tirado a carta de motorista antes. Quem sabe deveria ter arranjado um namorado para poder reclamar dessas coisas? Mas uma coisa é certa: tudo, tudo, tudo teria sido mais fácil se eu tivesse aceitado aquela outra proposta de emprego. Mas não aceitei e agora estou aqui, tendo que dirigir. Odeio dirigir. Odeio muito.
Oh, fuck fuck fuck fuck! O CD dos Beatles caiu do banco. Logo agora que eu queria mesmo ouvir! Parece que nada dá certo hoje, só quero chegar em casa e tomar o meu banho e.. Ah, peguei o CD!


[...]
- Olá, linda! Uau, você está ótima hoje!
- Não precisa falar comigo como se eu fosse umas das crianças. - Apontou para a ala infantil. Me senti culpada. - Já te disse.
- Desculpa. É difícil me acostumar, passo a maior parte do tempo com os pequenos. Então, novidades?
- Nenhuma, ainda na quimio... E você?
- Acabei de pegar os exames. Vou ficar nessa cadeira por um bom tempo...
- Nossa, eu sinto muito. Foi um caminhão, não foi?
- É, o homem estava embriagado às 3 horas da tarde. E sabe o que é mais estranho? Eu odiava dirigir, mas agora sinto tanta falta do meu carro...
Um sorriso sonhador estampado no rosto dela.
- Qual era o carro?
- Um Mini Cooper S, preto.
- British... Sei qual é.
- Eu adoraria dirigir... Adoraria muito, muito mesmo.
- E o que você odeia?
- Hm... Starbucks.

domingo, 21 de novembro de 2010

Beethoven

Talvez hoje seja um dia diferente. Talvez no fundo dos seus olhos azuis eu consiga rever os meus castanhos, que por muito estavam perdidos. Encontrei-os naquela noite de Outubro, durante a chuva, você lembra. Perdi-os sem nem mesmo me dar conta disso, mas esse assunto pode ser resolvido mais pra frente, por enquanto só quero, no mínimo, reconhecer o azul ao redor da tua pupila. Porque hoje em dia eu só vejo um par de olhos cansados, e já estou farta disso.
Mas hoje, com certeza, vai ser diferente. Eu sei. Eu sei porque eu tive um sonho. Sonhei com aquele dia de Outubro, aquele que você lembra. Primeiro vi só a chuva, começou muito, muito fina. Mas com a medida do tempo, e da musica clássica, foi engrossando. Parecia que dançava conforme Beethoven regia. Eu estava no meu quarto, ainda cor de rosa, com a partitura na frente do violoncelo, tentando acompanhar a beleza que a fita K7 entoava pelo aparelho de som. Tudo muito rústico, bons tempos. Com todo aquele volume misturado, não ouvi que você estava há uma hora jogando pedrinhas na minha janela, só fui perceber no intervalo de uma música pra outra, quando meus dedos já estavam dormentes. Assim que levantei o vidro senti o gelo do inverno invadir o quarto. Seu indicador mandou que eu me calasse, e fosse abrir a porta dos fundos. Obedeci. Subimos silenciosamente as escadas até meu quarto, onde estávamos seguros na nossa inocência infantil. Tirei meu instrumento musical de cima da cama e te cobri com meu cobertor para livrar o gelo dos seus braços. Quando seu queixo parou de tremer, conversamos, lembra? Eu me lembro de cada palavra.
- Você está maluco? O que está fazendo aqui?
- Vamos fugir, Samantha.
Fiquei instantaneamente sem reação. Já sabia que esse dia chegaria porque você tinha me avisado com algumas semanas de antecedência, e eu realmente tinha pensado que estava preparada.
- A... Agora? - perguntei sentindo que estava com a boca muito, muito seca.
- É o melhor momento, meu primo conseguiu aquela vaga na indústria de sapatos que nós tanto queríamos! - Seu sorriso era cativante, tenho que admitir.
- Ma... Mas e onde vamos morar? Como vamos nos sustentar até você receber o primeiro salário?
- Eu te falei que tenho juntado dinheiro há meses! Vamos ficar bem, mas temos que nos apressar porque o ônibus chega daqui há pouco e não vamos ter seus pais fora de casa durante muito tempo. Tem que ser agora.
Hesitei. E você reparou.
- Samantha? Samantha?!
- Eu... Eu... - Não conseguia dizer nada. Meus pais nunca foram maus comigo para merecerem isso, simplesmente não queriam que namorasse com você tão nova. Quero que acredite em mim quando digo que realmente fiquei confusa. - Eu não sei.
- Samantha, meu amor, planejamos isso há meses. Qual é o problema? Isso era o que você mais queria! Vamos nos casar e ter filhos e viver felizes sempre, sempre. Você jurou isso pra mim na árvore.
Ahh, a árvore. Bons tempos. Lembra da árvore, amor? Era o nosso ponto de encontro secreto, todos os dias depois das aulas. Éramos proibidos de nos vermos na escola, porque tínhamos classes separadas, mas assim que o sino tocava era a hora de sair correndo até a mangueira me encontrar contigo. Ali tudo era possível, até fazer uma promessa que naquela hora de decisão eu julguei ser estúpida.
- Aquilo foi na hora, eu... Eu fui estúpida, ok? Não pensei na minha família, nos meus pais, no meu irmão, no meu instrumento...
Agarrei o violoncelo como se fosse a última coisa que me restasse no mundo. Era minha esperança. Estava assustada.
- Samantha...
Você levantou e me abraçou muito forte. Eu senti o seu cheiro, isso sim, eu sinto até hoje. Você cheira a uma pessoa cheia de sonhos.
Foi nessa hora que fui apresentada aos seus olhos azuis. Os verdadeiros, não aqueles que eu sempre via e sempre te deu um certo charme. São olhos suplicantes e apaixonados. Tão intensos quanto o céu e tão profundos quanto o mar. Me decidi naquele momento. Me encontrei naquele momento.
Um discurso estava a ser preparado pela sua cabeça, mas foi cancelado pelo meu beijo.
- Eu vou. - Disse sorrindo.
- Eu te amo. - Você respondeu com o mesmo sorriso.
Deixei tudo. Meus pais, meu irmão e meu violoncelo, esse costumava ser meu tudo até eu encontrar você. Escrevi o mais rápido possível uma carta dizendo aos meus pais que a culpa não era deles, enquanto você guardava as primeiras roupas que via pela frente numa mala. Pegamos o ônibus e viajamos cerca de quinhentos quilômetros, o que na época era muito para ir com a quantidade de dinheiro que tínhamos. Foi o melhor dia da minha vida. E agora que olho ao redor da nossa linda casa, vejo o quanto construímos juntos. Tudo, tudo e muito mais.
E acordei desse sonho essa madrugada. Acho que na verdade isso pode ser chamado de lembrança. Mas independentemente do que isso se trata, me fez olhar mais do que para o tudo que construímos. Me fez olhar pra você. Me fez procurar seus olhos azuis suplicantes e apaixonados. E hoje, com certeza hoje, vai ser um dia diferente. Vai ser o dia em que eu vou me encontrar.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Poema de Marcus Andrey

Se possível te daria meu coração
Para que todos os dias você lembrasse de mim
Se possível te daria a minha alma
Para que todos os momentos você vivesse em mim
Se possível te daria a minha mente
Para que pudesse entender o que eu sinto por você
Mas tem uma coisa que eu lhe posso oferecer
Um presente medíocre, que de nada vale
Mas mostra como é meu coração, minha alma e minha mente
Dou meu amor a você.

Marcus Andrey Vasconcellos Júnior

sábado, 6 de novembro de 2010

(silêncio.)

- Alô, Alice? - Ouvi uma voz desesperada do outro lado da linha. Pelo jeito me reconheceu. - Você tá me ouvindo?
- Oh, meu Deus! Tô sim.
- Eu não quero que você diga uma única palavra. Quero explicar, quero falar tudo o que tenho pra dizer.
- Ok...
- Não, cala a boca! Nada, nem um ruído.
(silêncio.)
- Assim tá bom. Eu sei que o que eu fiz foi muito errado, mas tenho minhas razões. Saí de casa sem nem explicar ou dizer alguma coisa. Li no jornal que você chamou a polícia e o "desaparecimento" estava sendo investigado... Eu tô na Holanda sa...
- O quê?!
(silêncio.)
- ... Desculpa.
- Continuando... Eu tô na Holanda. Hm... Você sabe que eu sempre quis conhecer esse país. É lindo, é quase um sonho! Queria que você estivesse aqui - Som de choro do outro lado da linha. Ignorei. - ... E se você ainda quiser pode conhecer, mas creio que seria difícil você se acostumar, mas podíamos fazer coisas maravilhosas juntos aqui.
- Hm... Você vai ter que esperar um pouco. Tá ouvindo, né? Eu já vol...
- Vai.
(5 minutos depois o choro parou)
- Pronto.
- Desculpa, Alice. Eu acho que não devia ter tomado essa decisão sozinho. Ainda mais com um bebê na...
- Francisco.
- É um lindo nome.
- Ele é lindo.
(silêncio.)
- Hm... Você viu os papeis que eu deixei em cima da cama?
- Era um só. E sim, eu vi.
- Entendeu?
- Podias ter falado sobre isso comigo, você sabe. Saiu assim tão de repente...
- Entrei em pânico. - Nunca vou conseguir explicar. Nunca. Nem pra eu mesmo.
- E agora, como você tá?
- Curado. Recebi o resultado do exame hoje de manhã.
(silêncio.)
- Posso voltar pra casa?
- Você teve câncer, Carlos. Não foi nada contagioso para teres motivos de fazer o que fizeste.
-Eu sei. Desculpa. De qualquer forma o tratamento aqui é melhor.
- Aposto que sim. E você não pensou no Francisco?
- Todos os dias, a todo o momento.
- Estive naquela sala de parto sozinha preocupada em colocar um filho sem pai no mundo. Você acha mesmo que se preocupou?
- Desculpa... - Lágrimas, agora não.
- Desculpa.
bip.. bip.. bip.. bip.. bip..

domingo, 31 de outubro de 2010

31 de Outubro de 2010

[...] E assim, em apenas um dia, foi escolhida uma assassina para selar a vida de 192 milhões, 304 mil e 735 pessoas.

domingo, 24 de outubro de 2010

Sigaretta

Sua inocência permitia que ela se divertisse por enrolar mais um cigarro. Seu pai na verdade não lhe pedia por maldade, mas sim por preguiça. Era um bom pai. Esses momentos ao pé da lareira, com o fumo do tabaco e do fogo no ar, fez com que 25 anos depois fosse possível existir uma nostalgia. Mas vamos voltar dos 35 anos do pai, dos 4 da filha e dos 3 de viúvo. Naquela época ainda doía. O inverno era melhor porque no verão a mãe gostava de ir na praia. E o frio parecia congelar a memória. A criança guardava no peito, sem nem mesmo saber seu significado ainda, um medalhão de prata. Era a lembrança da sua mãe sem nem mesmo ter algo a ver com ela. A mulher nem gostava de velejar, embora houvesse um navio prateado no colar. De qualquer maneira, era melhor do que entregar uma garrafa de Vodka para a menina lembrar da mãe.

domingo, 10 de outubro de 2010

Sementes do impossível

Ela ainda segurava a semente entre os dedos com uma força brutal. Tinha toda a fé do mundo de que daquela vez, e só precisaria realmente de uma vez, isso iria funcionar. Só dependia dela, da sua força de vontade, e as circunstâncias eram detalhes. Se ajoelhou do lado da cama, com os olhos abertos, mas ainda segurava o grão. Era pequeno, quase imperceptível. Ficou ali sem pensar em nada, até suas pernas tremerem de dor. Então levantou-se e foi até a porta que ia para o jardim. Poderia plantá-la em qualquer lugar dentre os 10 m² de terra fértil que tinha nos fundos da casa, mas não serviria. Tinha que ser num lugar difícil, aliás, impossível. E foi por esse motivo que abriu um minúsculo buraco de sete centímetros no asfalto da casa. Tinha barro por baixo do cimento. "Impossível", pensou ela, "... Perfeito!". Cavou com o dedo indicador a terra vermelha e jogou a semente dentro. Depois regou-a com água até transbordar e escorrer pelo chão todo, para dificultar as coisas. Deu uma última olhada. Parecia sufocada. Estava satisfeita. Então voltou com tudo no seu devido lugar para esconder as evidências de sua avó.
Dentro de quatro semanas voltaria a abrir para ver se a semente germinava. Caso isso ocorresse, saberia que sua mãe seria curada. Parecia um grande sonho para uma menina de cinco anos de idade. E era.
O maior problema era a vovó Quina. E se ela percebesse que tinha um buraco atrás da porta enquanto varria a casa? Esse pensamento a fez acordar às quatro da manhã do 6º dia de espera e examinar sua pequena esperança de milagre. Ainda estava ali, da mesma maneira que tinha deixado dias atrás. E no dia seguinte choveu, então ela ficou três horas ajoelhada segurando um guarda-chuva laranja junto ao grão.
A menina não sabia, mas sua vó sabia o que sua neta estava fazendo. Viu-a abrindo o chão da janela da cozinha. Mesmo se tentasse impedir, sua pequena ainda acreditaria naquilo, tinha certeza. E foi por isso que, no 13º dia, comprou uma planta pequenina no supermercado e, enquanto a menina dormia, substituiu a semente. Foi o maior erro da sua vida.

Sua mãe deveria ter sido curada. Por que? Afinal tinha um pequeno vestígio de verde ali, no meio do cimento. Era impossível, não é? Era impossível.

domingo, 26 de setembro de 2010

Você já viu alguma vez o reflexo do lago?

- Você já viu alguma vez o reflexo do lago? Parece um espelho... Se você chegar bem, bem perto dele, consegue ver o seu próprio reflexo com uma perfeição tão absoluta que parece quase irreal... Melhor do que qualquer espelho de hoje em dia. Mas eu acho que o melhor de tudo mesmo é ter do outro lado do seu rosto as pedras cobertas com a água... É tão relaxante! Uma coisa muito importante também é tentar ouvir o som da natureza que está ao seu redor. Por que só a visão não vale de nada, o correto é sentir com todo o seu corpo. E quando você estiver assim, debruçado sobre o lago, ouvindo os pássaros a cantar e respirando o ar mais puro que jamais fez em tempo algum de sua vida, feche os olhos. Chore se for preciso. Chore por tudo, por toda a sua vida, por todos os momentos, por tudo o que você já disse ou já ouviu. Chore por todas as dores e todas as alegrias. Chore. E depois de chorar tudo, sorria. Sorria por tudo também. Não pense no que fazer quando esse momento acabar, e fique por lá o tempo que for necessário. E também volte quando puder. E quando voltar dessa viagem, não se esqueça de vir falar comigo e me perguntar "Você já viu alguma vez o reflexo do lago?"

sábado, 25 de setembro de 2010

Respeitável público


Senhoras e senhores, tomem seus lugares e sintam-se à vontade. Aqui está um folheto com toda a programação do que deve ser feito. No Terceiro ato palmas e, logo a seguir, no quarto, lágrimas, por favor. Não confundam, isso é muito importante. Agora, logo para início, as senhoras não podem comer pipoca. Faz mal aos dentes. Os senhores podem, mas com moderação. E certifiquem-se de não beijá-las durante o espetáculo. Tenham medo dos palhaços e caso um leão se enfureça com o treinador, tomem toda a liberdade para rir. Ah, quase ia me esquecendo, a casa dos espelhos não faz ninguém magro, a não ser que um dos senhores queira engordar. Não é necessário sentir pena dos animais, afinal, todos eles são ensinados para isso, não é? Fechem os olhos quando a luz estiver acesa e abram-os quando estiver apagada. Já tomaram os seus devidos lugares? Ora, que começe o espetáculo!

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

al-kuhul

Não eram simplesmente sonhos. Era mais que um pesadelo, ou um simples piscar de olhos. Não se tratava de uma imagem, nem de uma visão. Aconteceu de verdade. E o nome que dei foi passado. Tão sutil e singular. Veio rasteiro e acabou com tudo.
Consegui impedi-lo por 18 meses e 12 dias. Uau. Já estava prestes a receber minhas palmas. Não sentia falta, sério! Encontrava-me com amigos antigos e comportava-me normalmente, sem uma única gota. Arranjei outro emprego, não tão bom quanto o anterior, mas mesmo assim era um grande passo. Céus, eu estava saindo com uma mulher maravilhosa! E comprei um cachorro para o meu novo apartamento. Tudo estava bem e eu estava feliz. Dezoito meses e doze dias de felicidade.
Arruinados em dois segundos. Literalmente.
O engraçado é a forma que acabou. Com um olhar. Um simples e medíocre olhar no meio de uma rua de comerciantes. Ia comprar peixe para o jantar. No primeiro segundo apenas a vi. No segundo reconheci. Olhos castanhos, brilhantes como sempre. Pele muito, muito branca, contracenando com os cabelos negros. Tudo combinava de uma maneira imprevisível. Ela estava com um vestido branco. Vieram imagens na minha mente de fotos nossas sendo queimadas na minha churrasqueira. E depois da minha mão tocando seu rosto com arrogância. Fechei os olhos, e, alguns segundos depois, quando tornei a abri-los, ela estava sorrindo e doeu-me.
Eu podia fazer como qualquer pessoa normal e contar-lhe tudo o que estava a ocorrer de bom na minha vida. Mas não o fiz. Ao invés disso, entrei no bar que (quem diria?) estava bem ao lado. Sentei-me no banco ainda com a imagem dela na minha cabeça e afundei meus dezoito meses e doze dias no copo de Whisky.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Últimas Palavras (por Guilherme Lucas)

Pi, pi, pi, pi, pi, pi, pi.

- Os batimentos dela estão ficando estáveis, é só dar mais uma dose de anestésico e logo ela estará melhor. – Voz desconhecida. Um médico novo.
Minha mente já não conseguia assimilar muito bem as imagens, tantos problemas e nenhuma solução. Nada disso precisava ter acontecido.
Novamente dormi.
Depois de mais algumas horas naquele quase estado de coma que já me era comum, abri os olhos devagar e lá estava minha mãe. As imagens vinham como vultos, mas eu reconhecia sua voz solene, e ao mesmo tempo desesperada falando em meu ouvido:
- Isso tudo vai melhorar, querida.
Ela falava como se ainda tivesse solução, mas eu sabia que já era tarde de mais. Talvez, somente talvez, se fosse ele a dizer aquilo... Mas ele não estava presente, mais uma vez me abandonou.
- Como ela está, doutor?
- Sinto muito informar, mas seu estado é cada vez pior. A pneumonia está mais grave, e a diabetes não a deixa mais ver. São muitas doenças, mas essas são as mais graves no momento.
- Mãe, onde ele está? – Finalmente perguntei, com um tremendo sacrifício.
- Hm... Ele disse que não vem querida, disse que não conseguia te ver.
- Eu estou tão mal assim? – lágrimas, agora não, por favor.
- Eu vou sempre te amar, Amy.
As palavras delas só demonstravam mais ainda o meu estava de calamidade. Nada disso teria acontecido se eu a tivesse escutado e não me envolvesse com o Taylor. Foi ele quem me trouxe para essa vida. E não foi necessário mais do que uma noite, mais do que um furo, que acabou com toda a ela.
Uma dor correu por todo o meu corpo, senti minhas extremidades formigando, ela era tão infame que não era sentida em apenas um lugar. Não foi bem como eles dizem, não vi uma história passando em minha cabeça.
Usei minhas ultimas forças para me sentar, olhei para todos aqueles fantasmas da minha mente, tinha um em especial naquele lugar. Mãe. Não a via perfeitamente, mas me foquei no lugar aonde presumi que seriam os olhos.

O Último suspiro.
Adeus.

Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Corredor de lembranças

A mesma voz que ecoa às sete e quarenta e cinco da manhã, todos os dias, continuava a soar. O que era agora? Ah, incêndio. Nenhuma morte, ainda bem! Intervalo (com promoção de eletrodomésticos). Alguns inúteis minutos depois, a mulher maquiada para esconder as rugas, que na verdade já eram de conhecimento mundial, retornou à tela com mais uma catástrofe encomendada. Assalto. Dessa vez duas pessoas morreram. Desliguei a televisão. Perambulei pelo corredor observando as fotos que estavam cercadas por uma moldura feita de fios dourados. Eram todas praticamente iguais, apenas o bebê crescia ao longo delas, e quanto ao resto das pessoas, eram as mesmas, com a mesma expressão, mesmo tamanho, mesmo feitio, e, incrivelmente, as mesmas roupas. Estava mesmo à espera que na 5ª fotografia pudesse estar uma menina de 7 anos usando fraldas. Aliás, era a única que fazia questão de mudar qualquer coisa. Voltei o corredor inteiro e passei apenas a observá-la. Na primeira foto, devia ter uns 6 meses, estava ao colo da senhora mais velha, que estava com um vestido muito longo estampado com pequenas flores. Não se identificava nada da bebê, apenas que estava enrolada num cobertor cor-de-rosa. Deu até vontade de ficar ali no meio, aconchegada. Na segunda foto devia estar com dois anos. Todo o resto era o mesmo, até a senhora com o vestido. Mas ela carregava um porquinho de pelúcia e fazia uma careta para a câmera. Na terceira não parecia ter passado muito tempo, mas já usava um vestidinho rosa, com uns óculos em forma de estrela, da mesma cor. Na quarta fotografia já estava bem maior que a anterior, e apenas sorria. Na próxima já estava uma adolescente formada, e ao seu lado estava um rapaz com uma aparência simples. Nas molduras seguintes a senhora de cabelos brancos já não estava presente, mas o jovem continuava ao lado da menina, com o braço enrolado na sua cintura. Era um cara sortudo.
- Essa daqui sou eu. - Minha colega de trabalho apontou, por trás de mim, uma senhora bem gordinha.
- Meu Deus! É sério? - Perguntei tentando esconder o susto que levei por ela estar me observando ver as fotos. Há quanto tempo será que ela estava ali?
- Sim. Emagreci bastante.
- Uau! Parabéns.
Silêncio.
- Quem é essa? - Perguntei apontando para a garota. Os olhos da minha colega encheram-se de água. Fiquei sem reação.
- Essa... - Disse com lágrimas nos olhos, enquanto acariciava o próprio braço. - Essa é a Amy. Minha Amy...
Foi então que eu percebi que a menina Amy já não estava na próxima moldura dourada.
__________
Leia aqui e aqui para complementar.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Fireworks

Os fogos pareciam que não iriam acabar. E realmente esse não era o desejo de ninguém. Os dois graus negativos ainda estavam ali, mas já não eram sentidos com tanta intensidade. Os problemas pareciam desaparecer, um a um, diante de cada pequeno vestígio de luz mandado ao céu. Era lindo. Você quase de certeza já viu. Começa tão pequeno, e no segundo seguinte já está ocupando toda a sua visão, e cai em pequenos instantes, até desaparecer. E começar outro no lugar.
Você podia sentir que tinha mais umas tantas pessoas ao lado, mas as mentes e os sonhos parecem ter se unido em um. Consegui milagrosamente dar uma espiada. Os sorrisos. Eram todos iguais, na mesma intensidade, da mesma cor, transbordando da mesma maneira, sem conseguirem ser segurados. Alguns casais se abraçavam. A verdade é que estávamos todos sendo abraçados.
Esse foi um daqueles momentos em que você por um segundo fecha os olhos e pede, com muita, muita força, para não passar. E por um minuto realmente parece que deu certo e não acaba. Mas só por um minuto.

domingo, 25 de julho de 2010

Intrepidez

"Não sou romancista. Faço pouco caso das coisas, não ligo pra ninguém e a maior parte das vezes nem pra mim mesma. Pego meu violão e ando pela estrada à procura de alguma coisa que nunca soube e nem encontrei pista alguma. Mas sei que quero aquilo. E não vou desistir de andar com o case das minhas seis cordas nas costas pegando de carona em boleia até encontrar. Afinal, eu não sou romancista. Eu já disse isso?
Enfim, a vida me custou muito caro para me apaixonar assim. Vivo livremente, literalmente e intensamente até quando o sempre acabar. Estudei, e muito. Não tenho a cabeça no vento. Formada em psicologia. Talvez isso explique o morar na estrada.
Aprendi e formulei teorias humanas incríveis, e sei um pouco de cada cultura mundial, menos que o extraordinário, mas mais que o suficiente. Mas do que eu mais me arrependo na vida é de não ter aprendido a afinar o violão. Às vezes a corda A fica fechada sem querer do lado de fora do case. Quando vou tocar simplesmente fico amarrando ao redor do braço da viola o que restou das mágicas linhas prateadas."


Dói em mim até hoje ler essas palavras. Eu tinha 24 anos quando as escrevi. Foi o melhor momento da minha vida, e quando fecho os olhos ainda posso sentir o cheiro do vento de liberdade. Não precisava de ninguém, tinha dentro de mim todos os meus sonhos e sonhava-os acordada.
Algumas semanas depois que escrevi isso conheci a pessoa mais maravilhosa do mundo. Estou com ele até hoje. Um homem que não tem uma formosa aparência no lado de fora, mas possui um belo coração. Nos conhecemos num dia chuvoso do mês de Dezembro. Acho que era no Natal, mas não tenho certeza porque nunca andava com relógio ou calendário, simplesmente vivia. Chase estacionou o carro do meu lado e abaixou o vidro. Eu já estava acostumada com as pessoas pararem e perguntarem pra onde eu ia, mas ao invés, ele simplesmente disse "entra. Tá frio." e entrei. O banco de couro aconchegou minhas costas de uma forma consoladora. Há muitos dias que não lembrava o que era conforto.
Me levou para a sua casa, mas me respeitou como amiga. Morei seis meses ali para ele me dar o primeiro beijo. Nos casamos oito meses depois. E agora estou passando a mão pela minha barriga que tem uma menina de 26 semanas dentro.
Esta não é uma história triste. É o que eu era. Sou feliz hoje em dia, mas de uma maneira diferente, mais completa, mais cheia de pessoas. Por cinco minutos ainda tenho vontade de voltar alguns anos e respirar aquele ar novamente, e então vir de novo para o presente.
O violão? Ainda está dentro do case, atrás do novo armário do bebê. Não o tirei de lá desde o tal dia chuvoso de Dezembro.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Escala cromática

- Aqui?
- Não, põe o dedo aqui, aqui e aqui. Isso!
- O que é isso mesmo?
- Um Dó. Ago
ra bate nas cordas. Não, não em todas. Só nessas daqui ó...
- Ah. Isso é difícil.
- É só um Dó.
- Pra quem já sabe é só um Dó. Pronto, e o que vem depois?
- O Dó de novo. Só vou te passar outra nota quando você treinar.
- Mas eu não tenho um violão.
- Por isso que você vai vir todos os dias aqui pra casa treinar comigo.
- Hm. Ok, obrigada.
- Qual é o problema?
- Anh... Sabe... Passar uma tarde com você todo dia... Depois de tudo o que passamos...
- Ei, aquilo acabou, ok? Somos só amigos.
- O problema é que sempre foi assim. Enquanto eu era sua namorada você era meu amigo. E às vezes até um completo desconhecido.
- E que tal esquecermos o assunto e voltarmos para o Dó?
- O Dó é a nota musical ou o nosso ex-namoro?
- Qual você quer que seja?
- Nesse momento? Sinceramente? A nota musical.

sábado, 10 de julho de 2010

As minhas três primeiras palavras

Olhando para ela me lembrei dos primeiros dias em que vi seus olhos. São negros e densos, muitos brilhantes. E nunca mudaram, desde o primeiro dia. Não resisti tocar-lhe no cabelo que ia apenas até a bochecha agora. Dantes era nos ombros. Ela sorriu. Indescritivelmente. Os lábios finos pronunciaram algumas palavras que resolvi não prestar atenção na primeira vez, apenas para pedir que repetisse e a boca dela dançasse novamente. Foram os sete meses mais belos da minha vida.
Só prestei atenção no que ela dizia na terceira dança.
- Está surdo? Preciso te falar uma coisa.
Ainda levei alguns segundos para cair em mim.
- Desculpa. Acho que também preciso te dizer uma coisa.
Ela abaixou a cabeça. Sua pele tinha uma pigmentação avermelhada. Será que queríamos dizer o mesmo um para o outro?
- Diz você primeiro.
Prendi a respiração. Não queria falar assim, agora. Seria um bocado frio, sem química. Tentei beija-la para mudar o clima, mas ela virou o rosto.
- O que você quer dizer? Fala logo!
- Não quero falar primeiro. Diz você... – Se fosse a mesma coisa que queriamos seria mais fácil.
- Não, eu não consigo falar primeiro.
Fiquei instantaneamente animado. Era o mesmo motivo, de certeza!
- Já sei amor, vamos dizer juntos. – sorri.
- Não, isso é estúpido!
- Anda vá lá! Assim dói menos...
Ela estava pensando no assunto, claro. Não são as 3 palavras mais simples do mundo. Devem ser proferidas de verdade, com o sentimento verdadeiro. É a primeira vez que ia dizer isso a alguém.
- Se você acha...
Nos olhamos por um longo tempo. No seu olhar eu conseguia ler alguma coisa. Era um segredo. Também deve ser a primeira vez dela. Re solvi quebrar o gelo.
- Eu te amo. – Sorri e fiquei a espera dela.
Por muito tempo.
Tinha o rosto ainda mais vermelho, e as pupílas muito, mas muito pequenas. Até que seus pulmões puxaram um bocado de ar e sua boca abriu, com uma voz rouca.
- Acabou. – Logo depois de dizer, ela chorou.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Boa Noite

Eu tinha 12 anos. Nos reuníamos ao redor do meu avô em um círculo perfeito. Era uma cerimônia semanal. Costumava durar entre uma e três horas, e quando percebíamos que podia levar mais tempo que isso, pedíamos para continuar na semana seguinte.
Era relatado da boca do pai de nossos pais as histórias que ele conhecia sobre a guerra, nas quais, por acaso, vovô ouviu-as pela primeira vez de seu próprio pai. Nosso bisavô foi um bravo militar, que morreu pelo chão que pisamos todos os dias. Já tive mais noção patriota, mas tanto quanto estes domingo nublados foram se tornando mera rotina, esse sentimento se foi perdendo. Entretanto ainda sonho com a imagem do meu antepassado sendo pulverizado com a mina escondida. Não era uma imagem rápida. Os poros se dilatando milimetricamente até os órgãos não serem mais comprimidos, mas sim expandidos. O sangue voando tentando encontrar o local que dantes pertencia, mas não podia ser impedido pela gravidade. Eu via ainda o coração querendo dar a última pulsação. Não deu tempo. E depois apareciam os outros soldados, correndo armados e cobertos pelo sangue e partes do meu bisavô. Eles nem olharam para trás. Um tiroteio. Ele gostaria de ter participado pelo menos desse último antes de explodir.
Mas nem tudo se baseava em sua morte. Os combates. Ah sim, os combates! Eram ainda mais assustadores que a mina escondida. Eram escritas cartas detalhadas a respeito disso, o que é raro. Li uma vez algumas duas. Passei três semanas sem dormir direito. Meu primo de 17 anos leu todas. Não fala sobre o assunto, e hoje em dia já não participa da roda, mas escuta da cozinha, com os olhos fechados, o vovô falando. Vai ter que se alistar ano que vem. Pretende engordar até lá para tentar não ser admitido.
Minha avó disse que essa infância fez meu avô amadurecer muito rápido, e é isso que ele quer de nós, os netos. Sendo essa a intenção ou não, molhei a cama muitas vezes.

sábado, 12 de junho de 2010

Ateliê

A água, que dantes era transparente e límpida, tornou-se azul, preparando o pincel aguado para receber mais um borrado de tinta. A tela, ainda branca, aspirava ter logo alguma cor e ficar pendurada na sala da parede da casa de alguém. "Ela anseia isso..." pensou a pintora.
Quando deixou finalmente a tinta percorrer o tecido, fechou os olhos. Gostava de pintar com eles fechados para deixar os sentimentos tomarem conta do corpo. Assim também não precisaria se preocupar se a linha estava reta ou não. Era arte. Era dela. Era ela.
Deixou a vida tomar conta de suas mãos, desconcentrando a raiva que tinha guardada e passando-a para a tela. Mais do que relaxante, era uma saída.
Abriu os olhos somente para mudar a cor do pincel. Amarelo. Sentiu novamente o momento.
Rosa, Preto, depois roxo e, para terminar, laranja. A tela parecia não ser o suficiente. Queria pintar para sempre e não precisar passar na mercearia para comprar nada.
Empurrou os quadros pendurados e fez flores na parede. Também não era o bastante. O chão, o armário, o vaso sanitário, o lençol da cama, o teto... Até acabar a tinta e a raiva. Precisava ir na mercearia.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Uma corrida de crianças

O calor já estava a dar cabo de mim. O ar era áspero e o vento uma raridade. Podia sentir meus pulmões ardendo diante da respiração quente. O suor caminhava pelo meu rosto como eu deveria fazer diante do asfalto vermelho, mas tudo que eu pensava era numa Coca-Cola gelada com uma rodela de limão flutuando. O treinador e meu agente estavam do outro lado da arquibancada, gritando como loucos que eu ainda estava em terceiro.Precisava do título mais que ninguém. Precisava de dinheiro. Não só eu como eles.
Mas sentia as coxas espalmadas e doloridas. As solas dos pés doíam toda vez que pisava no chão. 100 metros era muito naquele momento, uma distância que há 2 anos atrás parecia uma corrida de crianças. E o que nesses anos me fez de diferença? Ora, eu era apenas o melhor corredor do mundo na categoria. Acabei de decaindo nesse título. Pensei que já não precisava treinar. Ahh, que amarga ironia! Aos poucos, com a alimentação irregular, meu corpo não ficou no mesmo estado, me fazendo pensar em Coca-Cola no meio de uma corrida.
E pensando nessas coisas da vida, tentando não prestar atenção nas dores, que me vi passando a faixa branca do chão e as pessoas gritando vindo de encontro.
Quase chorei quando derramaram uma garrafa d'água em minha cabeça.
Olhando e pensando no futuro vejo novamente aquela luz chamada oportunidade que havia quando era miúdo.

sábado, 29 de maio de 2010

All-Stars

Não custou muito conseguir enganar o porteiro para ter acesso ao telhado. Era um velho, meio gordo comparado comigo, mas não tanto para sua idade. Tinha um bigode branco e olhos verdes experientes, embora abatidos. Disse-lhe que precisava consertar uma antena, por isso precisaria de acesso às escadas. Para parecer convincente vesti um desses macacões que aparecem nos filmes, com a cor cinzenta. Ainda aprimorei com um martelo e alguns acessórios presos no cinto. Me senti o Batman.
Ventava asperamente lá fora. O porteiro de camisa azul já devia ter alguma noção que seus ossos não eram os mesmos de trinta anos atrás, então preferiu não me acompanhar ao telhado. Melhor pra ele.
Dobrei perfeitamente o macacão do lado de uma antena gigantesca. As ferramentas da minha cintura pesavam demasiado para continuar junto ao corpo. Juntei-as com a roupa. Não estava nu, claro! Tinha calçado os all-stars pretos que ganhei de uma amiga cerca de oito anos antes. Comprei uns Jeans e uma camisa vermelha apenas para aquele momento e os usava por baixo da roupa cinzenta. Não acredito muito em cartas, nem gosto de escrever, por isso escrevi apenas "porque eu quis" em verde num contraste com o vermelho do tecido da camisa.
Não era verdade. Não ia ser só porque eu queria. Mas isso não importa.
O drama que algumas pessoas fazem me faz confusão. Então simplesmente posicionei-me numa das pontas do asfalto branco. Apreciei a vista. A última. E pulei.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Salto alto

Alarguei o passo para tentar não pisar naquela pedra minúscula que estava no caminho. Não sei se consigo descrever o esforço que foi necessário para este simples ato. Penso que única forma de explicar seja dizer que assim que pousei a sola do meu sapato de 10 centímetros - o motivo - no asfalto, automaticamente uma lágrima percorreu meu rosto de tanta dor. Meus pés já acumulavam bolhas há uns quatro dias, como se estivesse colecionando para encher um álbum de figurinhas. E a cada vez que saia de casa com mais um salto alto, o direito brigava com o esquerdo sobre quem iria me machucar mais.
Enquanto andava pé ante pé neste sofrimento, avistei uma loja de roupa do outro lado da esquina. Era uma dessas que tinha o nome tão complicado que se tornava não somente ilegível como indecifrável. Sentei-me numa cadeira tipo francesa que fazia conjunto com uma mesa igualmente importada e um Maître internacional, que me perguntava se eu gostaria de alguma coisa. Pedi uma água, o que imaginava ser o consumo mais barato. Fiquei ali apenas para poder contemplar a loja do outro lado da rua, que mesmo sendo tão cara que não possuía nenhum cliente dentro, as funcionárias contorciam o rosto para fazer uma expressão de realização, enquanto cochichavam umas com as outras falando mal uma das outras.
Acendi um cigarro desses finos que quase não tem nicotina. Não fumo, mas sempre carrego um comigo para no caso de precisar parecer importante, e um café francês pedia isso. Nem mesmo colocava o tubo branco na boca, apenas ficava ali com ele entre os dedos, desejando que o vento soprasse na direção contrária e afastasse o fumo do meu nariz.
Não queria sair. Aproximadamente 5 minutos depois que minha água tinha acabado o Maître trouxe outra garrafa já aberta, então me apercebi que se não tratasse de ir embora antes da segunda água acabar, teria que pagar todas as garrafas que ele aguentasse me trazer. E algo me dizia que não se cansaria rápido.
Paguei o restaurante e resolvi passar naquela loja com o nome indecifrável. Fui surpreendentemente bem atendida por uma vendedora loira que, assim que virei as costas com meu novo cachecol verde limão, começou a cochichar algo sobre meus sapatos para as outras.
Com a adrenalina no corpo dada pela nova sacola cinzenta estampada com o nome da loja em dourado nas mãos, eu mal percebia o dor das bolhas dos pés. Ocupei meus pensamentos em que conjunto de roupas poderia combinar minha nova peça e de que forma iria esconder o saco no guarda-roupa para meu marido não se aperceber que andei com seu cartão de crédito por ai.
Entrei no carro perfeitamente bem lavado e, só por precaução, meti minha nova peça dentro do porta-luvas.
Dirigi tranquilamente até chegar na 5ª avenida, o centro de mansões. Sinceramente não sei o que nossa casa fazia ali. De fato tínhamos um local grande, mas aquele estilo de vida não fazia nosso tipo. Pessoas simples, pelo menos eu me considerava assim.
Virei a fechadura e encontrei tudo em seu perfeito local. Antes de me dirigir a cozinha e deitar o vidro da garrafa d’água fora, reparei num envelope laranja que estava pesarosamente pousado em cima da bancada de entrada. Tinha meu nome em cima, escrito com letras maiúsculas, pretas e frias. Abri-o. Li apenas o assunto para sentar no sofá e deitar as mãos na cabeça, com as lágrimas rolando pelo rosto dessa vez não pelos saltos.
Divórcio.

Artificial

Se fechar os olhos e me concentrar bem ainda consigo lembrar da sensação de sair com o carro numa tarde ensolarada e sentir o vento transpassar meus dedos do lado de fora da janela. A pista não estava assim tão cheia de carros, e até mesmo parecia que todos sentiam aquela paz, porque andavam - inexplicavelmente - na velocidade permitida.
Como não era preciso prestar tanta atenção ao trânsito, dava pra olhar os ipês floridos de várias cores cantarem que a primavera tinha chegado. O Sol era um pouco perturbador, mas ligar o ar condicionado, tinha certeza, faria tudo parecer artificial.
Lembro de desejar que tudo ficasse naquele estado, que a pista não acabasse com aquela paisagem, durante muito, muito tempo. Ficaria ali com a mão no volante a olhar pela janela. Talvez para sempre. Mas a pista acabou juntamente com tudo que estava ao seu redor, e as pessoas voltaram a ser obsessivas e aceleradas.
São mais que dez horas e mais que um oceano que me separa desse passado. É mais que o dinheiro, mais que a saudade, mais que amigos e familiares.
Sou eu.

sábado, 22 de maio de 2010

Passado

Pensei em escrever minha história na 3ª pessoa. Quando já estava mais pra lá do texto resolvi que como toda gente sabia da minha vida, não havia porque contar desse jeito. Eu ia falarFoi num dia prateado de inverno que o céu tomou um pingo de misericórdia e abriu uma brecha ao Sol, enquanto ela estava deitada no parque, com seu vestido vermelho cor-de-verão que contradizia com todo o restante da paisagem. A moça não pretendia ficar ali deitada, mas seu corpo, sedento por calor, arrastou-a automaticamente até a grama gelada e jogou-a no verde claro, enquanto a luz quente do Sol penetrava aliviosamente em sua pele". O restante eu apaguei. Tive que pedir desculpa à um bocado de gente, mas não suportava escrever uma vida como um anonimato, criando um nome tipicamente americano para dar um toque de glamour em tudo. Mas sou uma pessoa muito simples, sabe? Meu vestido nem era assim tão contrastante.
Isso aconteceu realmente no inverno. No dia 18 de Janeiro, há uns cinco anos atrás. Foi logo depois que fui abandonada. Tinha sido casado por nove anos e meio, até que me apaixonei. Senti por um homem aquilo que havia tentado sentir pelo meu marido a vida inteira, e tinha me enganado a respeito disso.
Ninguém nunca gostou do homem com que era casada. Ele não tinha amigos e sua família o abandonara. Vivia solitariamente trabalhando num bar (pela qual hoje é o gerente) até me encontrar. Fez juras e mais juras de amor à miúda que era nove anos mais nova. Oh, estou usando a 3ª pessoa de novo! Peço desculpas por isso. Enfim, me rendi completamente as suas promessas de amor eterno. Isto parece uma típica história de pedofilia, visto que tinha treze anos de idade na época. Mas não, por incrível que pareça, ele me respeitou até a data do nosso casamento, quando completei dezoito.
Eu era sua vida. Levou-me às alturas! Deixei-me levar quando ele disse que eu não devia ir para a faculdade, deixei-me quando também não queria que arrumasse emprego, deixei-me quando disse que não deveríamos ter filhos, por isso que tinha que tirar os ovários, deixei-me levar por tudo, simplesmente. E assim foi até o quinto ano de casada, aos 23 anos, quando o natural desejo materno começou a aparecer juntamente com a raiva de ter sido impedida de realizá-lo. Esse ódio me deu outros olhos, e forma que já não via meu marido da mesma maneira. Agora ele era um obstáculo na minha vida. Desejei nunca tê-lo.
Nesse estágio começaram as brigas de casal, que foram ficando mais e mais feias. Até que um dia, no meio de uma dessas discussões, ele me deu um soco. De início senti apenas o impacto, depois um gelado e uma pressão e, por fim, a dor. Céus, como aquilo doía! Seus punhos haviam conseguido quebrar meu nariz de primeira. Só ficou pior a partir daí.
Foi no início daquele inverno do vestido vermelho que conheci meu amante. Para variar, eu estava no hospital tentando inventar alguma desculpa para meu braço quebrado, quando um enfermeiro entrou no meu quarto. Enquanto fazia um curativo qualquer em minha testa, disse:
- Então, posso perguntar o que aconteceu a você? – Apetecia-me dizer que tinham batido minha cabeça na quina do armário enquanto seguravam meu braço tortuosamente. Entretanto, contentei-me em responder que tinha sido atropelada. Ele continuou: - Sabe, eu andei lendo sua ficha e reparei que foi internada 8 vezes nos últimos 6 meses com múltiplas fraturas, cortes e, algumas vezes, queimaduras. Posso perguntar o que realmente está acontecendo?
Fiquei calada durante muito, muito tempo, esperando que ele esquecesse a pergunta. Mas não, ao invés disso, reparou na minha aliança, na qual eu só tirava se fosse necessário um raio X. O enfermeiro segurou minha mão em frente à face para me mostrar o anel dourado.
- É isto?
Involuntariamente uma lágrima percorreu minha face dando uma resposta.
Alguns dias depois de receber alta, o enfermeiro me ligou alegando que pegara meu número no hospital – segredo – e pediu para retomarmos a conversa num café, enquanto meu marido trabalhava.
Bem, acho que já dá pra perceber o final dessa história. Começamos um romance escondido que durou seis meses. Acordava de madrugada e arrumava a casa toda para quando meu marido fosse para sua jornada de 9 horas de trabalho eu pudesse correr ao meu amante quando este não tinha trabalho no hospital.
Parecia que tudo estava bem, até que começamos a nos encontrar na minha casa enquanto havia uma reforma na dele. Durante quatro anos meu marido não era dispensado do trabalho. Quatro anos! Mas a lei de Murphy não simpatiza muito comigo e tratou de ajustar as coisas para justamente neste dia ele entrar em casa enquanto nos deleitávamos nos braços um do outro. Nunca apanhei tanto na vida como aquele dia.
Claro que não era certo traí-lo. Antes fosse pedir o divórcio, mas eu tinha medo. Havia sido convidada para viver com meu amante mais de cem vezes. Juro que queria mais que tudo, mas não reunia coragem para tal.
Depois de me espancar, meu marido me jogou na rua e ficou dentro da casa apenas com o enfermeiro. Ele matou-o. Não tive forças para voltar e impedi-lo. Fiquei ali na calçada com o sangue se misturando no tecido vermelho do vestido de verão, até que um vizinho de apercebeu e chamou uma ambulância.

Hoje meu ex-marido cumpre pena de 15 anos. Nunca mais amei ninguém na vida e tenho o vestido guardado sujo de sangue para me lembrar que não devo amar.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

43 Minutos de vida

A chuva parecia que nunca mais ia acabar enquanto ela segurava suas mãos no volante e tentava não se distrair com o CD dos Beatles que estava a tocar, focando toda sua mente na estrada. Não fazia muito tempo que tinha saído da auto escola, por isso tentava manter a concentração e fazer jus à carteira que havia recebido.
Não faltava muito para chegar à casa dos pais. Não costumava realmente visitá-los, mas sua mãe fazia aniversário dali a alguns dias e os 70 anos são uma idade muito importante, segundo ela. Também não se importava de visitar os pais, amava-os muito.
O que importa é que no caminho da autoestrada ela viu uma sombra negra que, embora fosse muito assustadora, parecia muito frágil. O velho dentro de uma capa cinzenta esticou os braços fazendo gesto que o carro parasse. Pela primeira vez na vida ela obedeceu e encostou o veículo. Não sabia porque estava fazendo aquilo, já que conhece milhões de histórias assustadoras que acontecem quando se dá carona à alguém. E nem mesmo existe um “mas” nessa história, ela simplesmente parou e acabou assim.
Um senhor de barba branca estava com o rosto coberto pela molhada capa cinza. Não era um mendigo, nem mesmo parecia sujo ou perdido, apenas preisava de carona e ela não fez perguntas. A menina não pôde deixar de reparar que ele tinha um rosto dócil quando descobriu-o do sobretudo, mas parecia cansado. Não cansado de estar no meio do nada num dia chuvoso, mas cansado da vida.
Antes que ela fizesse algum tipo de pergunta sobre ao velho, este se precipitou e esclareceu seu ar abatido. Disse que a sua mulher tinha lhe largado com dois filhos, que adoeceram fortemente e faleceram, então hoje ele corre de cidade em cidade à procura da ex-esposa para dizer a terrível notícia dos filhos e esclarecer que ainda a ama muito. De certeza o homem era um contador de histórias nato, tanto que a fez abaixar o volume do CD e parar de prestar atenção na pista, anotando na mente cada palavra reproduzida. As rugas de preocupação do rosto moviam-se quase chorando enquanto ele falava, e os olhos da inocente menina montavam uma cena dramática do senhor de capa cinza.
Ao fim de quarenta e três minutos de viagem o velho quis ser deixado no meio de mais uma pista deserta para pedir carona à alguma outra pessoa e tentar descobrir algo de sua esposa. Ela não contestou, ele parecia firme ao pedir aquilo e não aceitaria nada mais. Parou o carro no acostamento e, antes de o homem descesse, ela disse:
- Senhor, posso lhe perguntar uma coisa antes?
- Sim, menina.
- Sei que parece frio questionar uma coisa dessas, mas gostava mesmo de saber se essa história é verdade... Sabe, isso da sua mulher?
Ele olhou para o céu com os olhos brilhando e sorriu.
- Enquanto eu lhe contava essa história em qual pessoa da sua vida você estava pensando?
Ela observou o rádio com atenção e lembrou-se.
- Meus pais.
O sorriso dele aumentou.
- Sou um contador de lições, menina, apenas um contador de lições...

quarta-feira, 19 de maio de 2010

3ª Pessoa do Singular

Foi num dia prateado de inverno que o céu tomou um pingo de misericórdia e abriu uma brecha ao Sol, enquanto ela estava deitada no parque, com seu vestido vermelho cor-de-verão que contradizia com todo o restante da paisagem. A moça não pretendia ficar ali deitada, mas seu corpo, sedento por calor, arrastou-a automaticamente até a grama gelada e jogou-a no verde claro, enquanto a luz quente do Sol penetrava aliviosamente em sua pele.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

diacetilmorfina

- Alô?

- Oi amor. Sou eu.

-...

- Amor? Ta me ouvindo?

- To, mas não queria. Não quero falar com você.

- Não faz assim, amor. Não diz iss...

- Sei o que você fez ontem.

-...

- A Beth me ligou.

- E então? O que isso muda?

- Tudo.

-Por que tem que ser assim?

- Porque não quero acordar do lado de alguém com os braços furados.

-...

- Não ligue mais.

- Vamos nos encontrar! Vamos conversar...

- Amy, não. Por favor.

- Você sabe que eu não vivo sem você!

- Vive sim. Vivia bem com sua mãe antes de me encontrar.

- Mas você me mudou!

- Não jogue a culpa em cima de mim.

- Viva com isso, você que me apresentou este mundo.

- Mas eu soube sair dele.

- Você sabe que não. Você sabe que vai voltar de novo.

-... Adeus Amy.

- Amor?

- Hm?

- Eu te amo.

-... Adeus Amy.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Oito anos

Dava pra ver a silhueta dela através das lentes embaçadas de seus óculos. Parecia ainda mais perfeita àquela distância. O cabelo loiro e corrido que ia até os ombros, a pele limpa e macia, o corpo escultural... Cada mínimo elemento daquela mulher parecia estar em seu lugar. Não sabia seu nome, mas todo o dia parava em frente do café para vê-la tomar sua xícara. Ficava do lado outro lado da rua, com seus livros na mão, à espera que ela terminasse de beber e entrasse de volta no Peugeot 206 e dirigisse para algum misterioso lugar. Provavelmente seu trabalho, dado que isso ocorria todos os dias por volta das oito da manhã. Não parecia ter filhos, nunca atendia o celular enquanto estava dentro do estabelecimento, não usava aliança e nunca parecia preocupada. Apenas estes elementos eram primordiais para um cara qualquer ir dar alguma cantada ou tentar puxar uma conversa. Mas não para ele. Parecia que ter aquela imagem todos os dias de manhã já era suficiente. Há algum tempo atrás ainda validava em sua mente se devia ou não entrar lá e falar alguma coisa, mas essa idéia parecia ainda mais infantil do que sua verdadeira idade.
Mas neste dia em especial ela não apareceu. O miúdo virou seus grandes óculos para todos os cantos que seus 153 centímetros lhe permitiam, mas não conseguiu encontrá-la. Chegou até mesmo a entrar no café, para ver se por acaso sua mesa não pudesse ter sido mudada de lugar. Mas não. Estavam ali as duas cadeiras (uma sempre ficava com a bolsa apoiada para ninguém mais ocupá-la), estampadas com flores azuis e amarelas, completamente vazias. Não havia mais o que fazer. Andou para a escola com um semblante tristonho e foi ainda mais caçoado pelos colegas de classe. Normalmente, nessas horas, a imagem daquela serena mulher não o fazia perder a cabeça. Chegou a casa já chorando, lembrando já não dela, mas das gozações dos outros miúdos. Dormiu com as lágrimas secas ao redor dos olhos vermelhos.
No dia seguinte lá estava ela, a imagem que completava seu mundo, o seu pedaço de manhã, a sua janela, seu céu azul... E tudo parecia que ia ficar bem de novo.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Supermercado

Os finos e trêmulos dedos dela alinhavam meticulosamente as latas de atum. Era uma perfeccionista nata, e não negava. Talvez esse tenha sido o motivo de a contratarem para o serviço. Ou teria sido porque seu pai era primo do dono da loja? Nunca descobriria. Mas também não se importava tanto assim, o que valia era que estava trabalhando e ninguém poderia lhe tirar aquela sensação de no fim do mês tocar nos maços de dinheiro e sentir o prazer de pensar que era dela, e tão somente assim seria. Mas não pensava no motivo de ter sido contratada ou no dinheiro agora. Nem mesmo estava prestando atenção nas latas amarelas. Só conseguia focar seu cérebro para o jovem rapaz que estava na estante ao lado, organizando os molhos. Ele também olhava fixamente para ela, e a troca intensa de olhares podia ser sentida em quilômetros. Até mesmo os clientes que queriam esclarecimento de onde ficava algum produto não ousavam tocar-lhes e acabar com aquele momento.
Já fazia algum tempo que às vezes se olhavam dessa maneira, entretanto por um período curto de tempo. Era sempre ela quem desviava primeiro, com um sorriso meio pálido no rosto – não queria que ele visse que ela estava sorrindo. Na noite anterior a menina jurou em frente ao espelho que seria forte e ficaria olhando fixamente, até... Até... Não conseguiu definir até quando, mas daria seu máximo. E deu. O “até” esperou ao lado dela para surgir e acabar com aquilo. Mas nenhum dos dois lhe deu oportunidade por um bom tampo, até ela já não agüentar e olhar para baixo. Respirou com um momento, apertando uma das latas nas mãos até quase abri-la. Pressionou os olhos de tal maneira que, quando os abriu novamente, o chão havia mudado por alguns segundos de cor. O ladrilho ficou roxo, depois vermelho, levemente verde, até ficar branco novamente, na sua tonalidade original.
Conversavam às vezes depois do expediente. Ele arriscava tocar em seu braço de vez em quando, e sempre dava um marcante beijo em sua bochecha quando terminavam de falar e iam se despedir. Era inevitável não ficar vermelha e encolher os ombros. Mas nesse dia foi diferente. Ele perguntou se ela não queria companhia pra voltar pra casa. Não podia dizer não, mas estava extremamente envergonhada. Andaram em silêncio quase o caminho todo, de mãos dadas. Os dois sentiam o suor do nervosismo, mas não tinham ação nenhuma até chegarem a casa dela. Trocaram algumas palavras de agradecimento e, repentinamente, ele a puxou pela cintura quando a menina já umedecia os lábios, ele disse, não, ele gritou:
- Eu sou gay! – E a abraçou com um sorriso enquanto lágrimas desciam de seu rosto.
Ela chorou dias, sim, chorou semanas afim! Demitiu-se do trabalho, trancou a faculdade, se distanciou dos amigos. Não havia dito a ninguém o motivo, nem mesmo a seu novo descoberto amigo. Não podia acreditar em como ele não percebeu a química que acontecia entre eles. Mas assim aconteceu, e assim seu sentimento morreu. E ninguém nunca saberia. Jurou a si própria.

Os finos e trêmulos dedos dele alinhavam meticulosamente as latas de atum. Era um perfeccionista nato, e não negava. Talvez esse tenha sido o motivo de o contratarem para o serviço. O que valia era que estava trabalhando e ninguém poderia lhe tirar aquela sensação de no fim do mês tocar nos maços de dinheiro e sentir o prazer de pensar que era dele, e tão somente assim seria. Mas não pensava no motivo de ter sido contratado ou no dinheiro agora. Nem mesmo estava prestando atenção nas latas amarelas. Só conseguia focar seu cérebro para o jovem rapaz que estava na estante ao lado, organizando os molhos.

A Janela

Queria ter uma janela. Uma dessas velhas, feitas de madeira e bem coloridas, pra que eu pudesse regar do lado de fora flores vermelhas, laranjas e amarelas. Queria me debruçar sobre ela e sentir medo de uma farpa arranhar meu braço, ou de que a tinta desgastada agarrasse na minha blusa branca.
Queria poder olhar olhar para baixo e somente me sentir segura quando segurasse fortemente na borda da madeira, e queria olhar pra cima e ver o céu azul no fundo com as nuvens brancas movendo-se ao seu relevo, e desejar que a janela voasse e me levasse para o além.
Queria ter uma para no inverno, enrolada numa coberta e tomando chocolate quente, pudesse cautelosamente retirar minha mão do seguro e desenhar um boneco de neve no vidro. E depois, com o vapor da minha boca, desfazer tudo isso e desenhar novamente a mesma coisa, até ter idéia de algum outro desenho.
Queria para namorar em frente a ela e contar meus segredos mais escondidos para o vento.
Queria ter uma janela. Uma dessas velhas, feitas de madeira e bem coloridas, pra que eu pudesse regar do lado de fora flores vermelhas, laranjas e amarelas

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Cartas

Entre as miúdas e trêmulas letras que formavam infantis palavras eu conseguia enxergar meu passado. O tempo me trazia como presente uma nostalgia. Era engraçado perceber o processo de crescimento mental de uma pessoa. Tratava-se da minha filha, que divinamente herdou os dotes poéticos da mãe, e desde muito miúda, na verdade, desde que aprendeu a ler e escrever, pegava um pequeno caderno rosa e transmitia-o todos os seus pensamentos, através de sua pomposa caneta da Hello Kitty. De início as frases eram quase imperceptíveis, com as linhas uma em cima das outras.
Essas páginas cor-de-rosa me traziam memórias do meu passado porque eu era exatamente da mesma maneira quando pequena, mas, ao contrário da minha pequena Amy, não tive nenhum tipo de incentivo. Quando minha mãe encontrava meus segredos traspassados em letras, tratava logo de amassá-los e jogá-los no lixo, junto com meus sonhos.
Queria ter tido a vida que dei a Amy, mas sempre fui grata pela oportunidade de ser diferente da minha mãe.
Desculpa pelo papel estar seco, amor. É que escrevo isto chorando, e penso que até essa folha chegar a você o papel já não estará da mesma maneira. E se as lágrimas borrarem alguma coisa peço-te que não me ligues para esclarecimento. O motivo é que já não posso ouvir sua voz. Você sabe o que me lembra. Também não me escreva, nem me leve a mal por pedir-te isso.
Amo você, amo suas palavras.
Simplesmente não consigo acreditar que ela se foi...