Pensei em escrever minha história na 3ª pessoa. Quando já estava mais pra lá do texto resolvi que como toda gente sabia da minha vida, não havia porque contar desse jeito. Eu ia falar “Foi num dia prateado de inverno que o céu tomou um pingo de misericórdia e abriu uma brecha ao Sol, enquanto ela estava deitada no parque, com seu vestido vermelho cor-de-verão que contradizia com todo o restante da paisagem. A moça não pretendia ficar ali deitada, mas seu corpo, sedento por calor, arrastou-a automaticamente até a grama gelada e jogou-a no verde claro, enquanto a luz quente do Sol penetrava aliviosamente em sua pele". O restante eu apaguei. Tive que pedir desculpa à um bocado de gente, mas não suportava escrever uma vida como um anonimato, criando um nome tipicamente americano para dar um toque de glamour em tudo. Mas sou uma pessoa muito simples, sabe? Meu vestido nem era assim tão contrastante.
Isso aconteceu realmente no inverno. No dia 18 de Janeiro, há uns cinco anos atrás. Foi logo depois que fui abandonada. Tinha sido casado por nove anos e meio, até que me apaixonei. Senti por um homem aquilo que havia tentado sentir pelo meu marido a vida inteira, e tinha me enganado a respeito disso.
Ninguém nunca gostou do homem com que era casada. Ele não tinha amigos e sua família o abandonara. Vivia solitariamente trabalhando num bar (pela qual hoje é o gerente) até me encontrar. Fez juras e mais juras de amor à miúda que era nove anos mais nova. Oh, estou usando a 3ª pessoa de novo! Peço desculpas por isso. Enfim, me rendi completamente as suas promessas de amor eterno. Isto parece uma típica história de pedofilia, visto que tinha treze anos de idade na época. Mas não, por incrível que pareça, ele me respeitou até a data do nosso casamento, quando completei dezoito.
Eu era sua vida. Levou-me às alturas! Deixei-me levar quando ele disse que eu não devia ir para a faculdade, deixei-me quando também não queria que arrumasse emprego, deixei-me quando disse que não deveríamos ter filhos, por isso que tinha que tirar os ovários, deixei-me levar por tudo, simplesmente. E assim foi até o quinto ano de casada, aos 23 anos, quando o natural desejo materno começou a aparecer juntamente com a raiva de ter sido impedida de realizá-lo. Esse ódio me deu outros olhos, e forma que já não via meu marido da mesma maneira. Agora ele era um obstáculo na minha vida. Desejei nunca tê-lo.
Nesse estágio começaram as brigas de casal, que foram ficando mais e mais feias. Até que um dia, no meio de uma dessas discussões, ele me deu um soco. De início senti apenas o impacto, depois um gelado e uma pressão e, por fim, a dor. Céus, como aquilo doía! Seus punhos haviam conseguido quebrar meu nariz de primeira. Só ficou pior a partir daí.
Foi no início daquele inverno do vestido vermelho que conheci meu amante. Para variar, eu estava no hospital tentando inventar alguma desculpa para meu braço quebrado, quando um enfermeiro entrou no meu quarto. Enquanto fazia um curativo qualquer em minha testa, disse:
- Então, posso perguntar o que aconteceu a você? – Apetecia-me dizer que tinham batido minha cabeça na quina do armário enquanto seguravam meu braço tortuosamente. Entretanto, contentei-me em responder que tinha sido atropelada. Ele continuou: - Sabe, eu andei lendo sua ficha e reparei que foi internada 8 vezes nos últimos 6 meses com múltiplas fraturas, cortes e, algumas vezes, queimaduras. Posso perguntar o que realmente está acontecendo?
Fiquei calada durante muito, muito tempo, esperando que ele esquecesse a pergunta. Mas não, ao invés disso, reparou na minha aliança, na qual eu só tirava se fosse necessário um raio X. O enfermeiro segurou minha mão em frente à face para me mostrar o anel dourado.
- É isto?
Involuntariamente uma lágrima percorreu minha face dando uma resposta.
Alguns dias depois de receber alta, o enfermeiro me ligou alegando que pegara meu número no hospital – segredo – e pediu para retomarmos a conversa num café, enquanto meu marido trabalhava.
Bem, acho que já dá pra perceber o final dessa história. Começamos um romance escondido que durou seis meses. Acordava de madrugada e arrumava a casa toda para quando meu marido fosse para sua jornada de 9 horas de trabalho eu pudesse correr ao meu amante quando este não tinha trabalho no hospital.
Parecia que tudo estava bem, até que começamos a nos encontrar na minha casa enquanto havia uma reforma na dele. Durante quatro anos meu marido não era dispensado do trabalho. Quatro anos! Mas a lei de Murphy não simpatiza muito comigo e tratou de ajustar as coisas para justamente neste dia ele entrar em casa enquanto nos deleitávamos nos braços um do outro. Nunca apanhei tanto na vida como aquele dia.
Claro que não era certo traí-lo. Antes fosse pedir o divórcio, mas eu tinha medo. Havia sido convidada para viver com meu amante mais de cem vezes. Juro que queria mais que tudo, mas não reunia coragem para tal.
Depois de me espancar, meu marido me jogou na rua e ficou dentro da casa apenas com o enfermeiro. Ele matou-o. Não tive forças para voltar e impedi-lo. Fiquei ali na calçada com o sangue se misturando no tecido vermelho do vestido de verão, até que um vizinho de apercebeu e chamou uma ambulância.
Hoje meu ex-marido cumpre pena de 15 anos. Nunca mais amei ninguém na vida e tenho o vestido guardado sujo de sangue para me lembrar que não devo amar.