Meebo Bar

sábado, 29 de maio de 2010

All-Stars

Não custou muito conseguir enganar o porteiro para ter acesso ao telhado. Era um velho, meio gordo comparado comigo, mas não tanto para sua idade. Tinha um bigode branco e olhos verdes experientes, embora abatidos. Disse-lhe que precisava consertar uma antena, por isso precisaria de acesso às escadas. Para parecer convincente vesti um desses macacões que aparecem nos filmes, com a cor cinzenta. Ainda aprimorei com um martelo e alguns acessórios presos no cinto. Me senti o Batman.
Ventava asperamente lá fora. O porteiro de camisa azul já devia ter alguma noção que seus ossos não eram os mesmos de trinta anos atrás, então preferiu não me acompanhar ao telhado. Melhor pra ele.
Dobrei perfeitamente o macacão do lado de uma antena gigantesca. As ferramentas da minha cintura pesavam demasiado para continuar junto ao corpo. Juntei-as com a roupa. Não estava nu, claro! Tinha calçado os all-stars pretos que ganhei de uma amiga cerca de oito anos antes. Comprei uns Jeans e uma camisa vermelha apenas para aquele momento e os usava por baixo da roupa cinzenta. Não acredito muito em cartas, nem gosto de escrever, por isso escrevi apenas "porque eu quis" em verde num contraste com o vermelho do tecido da camisa.
Não era verdade. Não ia ser só porque eu queria. Mas isso não importa.
O drama que algumas pessoas fazem me faz confusão. Então simplesmente posicionei-me numa das pontas do asfalto branco. Apreciei a vista. A última. E pulei.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Salto alto

Alarguei o passo para tentar não pisar naquela pedra minúscula que estava no caminho. Não sei se consigo descrever o esforço que foi necessário para este simples ato. Penso que única forma de explicar seja dizer que assim que pousei a sola do meu sapato de 10 centímetros - o motivo - no asfalto, automaticamente uma lágrima percorreu meu rosto de tanta dor. Meus pés já acumulavam bolhas há uns quatro dias, como se estivesse colecionando para encher um álbum de figurinhas. E a cada vez que saia de casa com mais um salto alto, o direito brigava com o esquerdo sobre quem iria me machucar mais.
Enquanto andava pé ante pé neste sofrimento, avistei uma loja de roupa do outro lado da esquina. Era uma dessas que tinha o nome tão complicado que se tornava não somente ilegível como indecifrável. Sentei-me numa cadeira tipo francesa que fazia conjunto com uma mesa igualmente importada e um Maître internacional, que me perguntava se eu gostaria de alguma coisa. Pedi uma água, o que imaginava ser o consumo mais barato. Fiquei ali apenas para poder contemplar a loja do outro lado da rua, que mesmo sendo tão cara que não possuía nenhum cliente dentro, as funcionárias contorciam o rosto para fazer uma expressão de realização, enquanto cochichavam umas com as outras falando mal uma das outras.
Acendi um cigarro desses finos que quase não tem nicotina. Não fumo, mas sempre carrego um comigo para no caso de precisar parecer importante, e um café francês pedia isso. Nem mesmo colocava o tubo branco na boca, apenas ficava ali com ele entre os dedos, desejando que o vento soprasse na direção contrária e afastasse o fumo do meu nariz.
Não queria sair. Aproximadamente 5 minutos depois que minha água tinha acabado o Maître trouxe outra garrafa já aberta, então me apercebi que se não tratasse de ir embora antes da segunda água acabar, teria que pagar todas as garrafas que ele aguentasse me trazer. E algo me dizia que não se cansaria rápido.
Paguei o restaurante e resolvi passar naquela loja com o nome indecifrável. Fui surpreendentemente bem atendida por uma vendedora loira que, assim que virei as costas com meu novo cachecol verde limão, começou a cochichar algo sobre meus sapatos para as outras.
Com a adrenalina no corpo dada pela nova sacola cinzenta estampada com o nome da loja em dourado nas mãos, eu mal percebia o dor das bolhas dos pés. Ocupei meus pensamentos em que conjunto de roupas poderia combinar minha nova peça e de que forma iria esconder o saco no guarda-roupa para meu marido não se aperceber que andei com seu cartão de crédito por ai.
Entrei no carro perfeitamente bem lavado e, só por precaução, meti minha nova peça dentro do porta-luvas.
Dirigi tranquilamente até chegar na 5ª avenida, o centro de mansões. Sinceramente não sei o que nossa casa fazia ali. De fato tínhamos um local grande, mas aquele estilo de vida não fazia nosso tipo. Pessoas simples, pelo menos eu me considerava assim.
Virei a fechadura e encontrei tudo em seu perfeito local. Antes de me dirigir a cozinha e deitar o vidro da garrafa d’água fora, reparei num envelope laranja que estava pesarosamente pousado em cima da bancada de entrada. Tinha meu nome em cima, escrito com letras maiúsculas, pretas e frias. Abri-o. Li apenas o assunto para sentar no sofá e deitar as mãos na cabeça, com as lágrimas rolando pelo rosto dessa vez não pelos saltos.
Divórcio.

Artificial

Se fechar os olhos e me concentrar bem ainda consigo lembrar da sensação de sair com o carro numa tarde ensolarada e sentir o vento transpassar meus dedos do lado de fora da janela. A pista não estava assim tão cheia de carros, e até mesmo parecia que todos sentiam aquela paz, porque andavam - inexplicavelmente - na velocidade permitida.
Como não era preciso prestar tanta atenção ao trânsito, dava pra olhar os ipês floridos de várias cores cantarem que a primavera tinha chegado. O Sol era um pouco perturbador, mas ligar o ar condicionado, tinha certeza, faria tudo parecer artificial.
Lembro de desejar que tudo ficasse naquele estado, que a pista não acabasse com aquela paisagem, durante muito, muito tempo. Ficaria ali com a mão no volante a olhar pela janela. Talvez para sempre. Mas a pista acabou juntamente com tudo que estava ao seu redor, e as pessoas voltaram a ser obsessivas e aceleradas.
São mais que dez horas e mais que um oceano que me separa desse passado. É mais que o dinheiro, mais que a saudade, mais que amigos e familiares.
Sou eu.

sábado, 22 de maio de 2010

Passado

Pensei em escrever minha história na 3ª pessoa. Quando já estava mais pra lá do texto resolvi que como toda gente sabia da minha vida, não havia porque contar desse jeito. Eu ia falarFoi num dia prateado de inverno que o céu tomou um pingo de misericórdia e abriu uma brecha ao Sol, enquanto ela estava deitada no parque, com seu vestido vermelho cor-de-verão que contradizia com todo o restante da paisagem. A moça não pretendia ficar ali deitada, mas seu corpo, sedento por calor, arrastou-a automaticamente até a grama gelada e jogou-a no verde claro, enquanto a luz quente do Sol penetrava aliviosamente em sua pele". O restante eu apaguei. Tive que pedir desculpa à um bocado de gente, mas não suportava escrever uma vida como um anonimato, criando um nome tipicamente americano para dar um toque de glamour em tudo. Mas sou uma pessoa muito simples, sabe? Meu vestido nem era assim tão contrastante.
Isso aconteceu realmente no inverno. No dia 18 de Janeiro, há uns cinco anos atrás. Foi logo depois que fui abandonada. Tinha sido casado por nove anos e meio, até que me apaixonei. Senti por um homem aquilo que havia tentado sentir pelo meu marido a vida inteira, e tinha me enganado a respeito disso.
Ninguém nunca gostou do homem com que era casada. Ele não tinha amigos e sua família o abandonara. Vivia solitariamente trabalhando num bar (pela qual hoje é o gerente) até me encontrar. Fez juras e mais juras de amor à miúda que era nove anos mais nova. Oh, estou usando a 3ª pessoa de novo! Peço desculpas por isso. Enfim, me rendi completamente as suas promessas de amor eterno. Isto parece uma típica história de pedofilia, visto que tinha treze anos de idade na época. Mas não, por incrível que pareça, ele me respeitou até a data do nosso casamento, quando completei dezoito.
Eu era sua vida. Levou-me às alturas! Deixei-me levar quando ele disse que eu não devia ir para a faculdade, deixei-me quando também não queria que arrumasse emprego, deixei-me quando disse que não deveríamos ter filhos, por isso que tinha que tirar os ovários, deixei-me levar por tudo, simplesmente. E assim foi até o quinto ano de casada, aos 23 anos, quando o natural desejo materno começou a aparecer juntamente com a raiva de ter sido impedida de realizá-lo. Esse ódio me deu outros olhos, e forma que já não via meu marido da mesma maneira. Agora ele era um obstáculo na minha vida. Desejei nunca tê-lo.
Nesse estágio começaram as brigas de casal, que foram ficando mais e mais feias. Até que um dia, no meio de uma dessas discussões, ele me deu um soco. De início senti apenas o impacto, depois um gelado e uma pressão e, por fim, a dor. Céus, como aquilo doía! Seus punhos haviam conseguido quebrar meu nariz de primeira. Só ficou pior a partir daí.
Foi no início daquele inverno do vestido vermelho que conheci meu amante. Para variar, eu estava no hospital tentando inventar alguma desculpa para meu braço quebrado, quando um enfermeiro entrou no meu quarto. Enquanto fazia um curativo qualquer em minha testa, disse:
- Então, posso perguntar o que aconteceu a você? – Apetecia-me dizer que tinham batido minha cabeça na quina do armário enquanto seguravam meu braço tortuosamente. Entretanto, contentei-me em responder que tinha sido atropelada. Ele continuou: - Sabe, eu andei lendo sua ficha e reparei que foi internada 8 vezes nos últimos 6 meses com múltiplas fraturas, cortes e, algumas vezes, queimaduras. Posso perguntar o que realmente está acontecendo?
Fiquei calada durante muito, muito tempo, esperando que ele esquecesse a pergunta. Mas não, ao invés disso, reparou na minha aliança, na qual eu só tirava se fosse necessário um raio X. O enfermeiro segurou minha mão em frente à face para me mostrar o anel dourado.
- É isto?
Involuntariamente uma lágrima percorreu minha face dando uma resposta.
Alguns dias depois de receber alta, o enfermeiro me ligou alegando que pegara meu número no hospital – segredo – e pediu para retomarmos a conversa num café, enquanto meu marido trabalhava.
Bem, acho que já dá pra perceber o final dessa história. Começamos um romance escondido que durou seis meses. Acordava de madrugada e arrumava a casa toda para quando meu marido fosse para sua jornada de 9 horas de trabalho eu pudesse correr ao meu amante quando este não tinha trabalho no hospital.
Parecia que tudo estava bem, até que começamos a nos encontrar na minha casa enquanto havia uma reforma na dele. Durante quatro anos meu marido não era dispensado do trabalho. Quatro anos! Mas a lei de Murphy não simpatiza muito comigo e tratou de ajustar as coisas para justamente neste dia ele entrar em casa enquanto nos deleitávamos nos braços um do outro. Nunca apanhei tanto na vida como aquele dia.
Claro que não era certo traí-lo. Antes fosse pedir o divórcio, mas eu tinha medo. Havia sido convidada para viver com meu amante mais de cem vezes. Juro que queria mais que tudo, mas não reunia coragem para tal.
Depois de me espancar, meu marido me jogou na rua e ficou dentro da casa apenas com o enfermeiro. Ele matou-o. Não tive forças para voltar e impedi-lo. Fiquei ali na calçada com o sangue se misturando no tecido vermelho do vestido de verão, até que um vizinho de apercebeu e chamou uma ambulância.

Hoje meu ex-marido cumpre pena de 15 anos. Nunca mais amei ninguém na vida e tenho o vestido guardado sujo de sangue para me lembrar que não devo amar.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

43 Minutos de vida

A chuva parecia que nunca mais ia acabar enquanto ela segurava suas mãos no volante e tentava não se distrair com o CD dos Beatles que estava a tocar, focando toda sua mente na estrada. Não fazia muito tempo que tinha saído da auto escola, por isso tentava manter a concentração e fazer jus à carteira que havia recebido.
Não faltava muito para chegar à casa dos pais. Não costumava realmente visitá-los, mas sua mãe fazia aniversário dali a alguns dias e os 70 anos são uma idade muito importante, segundo ela. Também não se importava de visitar os pais, amava-os muito.
O que importa é que no caminho da autoestrada ela viu uma sombra negra que, embora fosse muito assustadora, parecia muito frágil. O velho dentro de uma capa cinzenta esticou os braços fazendo gesto que o carro parasse. Pela primeira vez na vida ela obedeceu e encostou o veículo. Não sabia porque estava fazendo aquilo, já que conhece milhões de histórias assustadoras que acontecem quando se dá carona à alguém. E nem mesmo existe um “mas” nessa história, ela simplesmente parou e acabou assim.
Um senhor de barba branca estava com o rosto coberto pela molhada capa cinza. Não era um mendigo, nem mesmo parecia sujo ou perdido, apenas preisava de carona e ela não fez perguntas. A menina não pôde deixar de reparar que ele tinha um rosto dócil quando descobriu-o do sobretudo, mas parecia cansado. Não cansado de estar no meio do nada num dia chuvoso, mas cansado da vida.
Antes que ela fizesse algum tipo de pergunta sobre ao velho, este se precipitou e esclareceu seu ar abatido. Disse que a sua mulher tinha lhe largado com dois filhos, que adoeceram fortemente e faleceram, então hoje ele corre de cidade em cidade à procura da ex-esposa para dizer a terrível notícia dos filhos e esclarecer que ainda a ama muito. De certeza o homem era um contador de histórias nato, tanto que a fez abaixar o volume do CD e parar de prestar atenção na pista, anotando na mente cada palavra reproduzida. As rugas de preocupação do rosto moviam-se quase chorando enquanto ele falava, e os olhos da inocente menina montavam uma cena dramática do senhor de capa cinza.
Ao fim de quarenta e três minutos de viagem o velho quis ser deixado no meio de mais uma pista deserta para pedir carona à alguma outra pessoa e tentar descobrir algo de sua esposa. Ela não contestou, ele parecia firme ao pedir aquilo e não aceitaria nada mais. Parou o carro no acostamento e, antes de o homem descesse, ela disse:
- Senhor, posso lhe perguntar uma coisa antes?
- Sim, menina.
- Sei que parece frio questionar uma coisa dessas, mas gostava mesmo de saber se essa história é verdade... Sabe, isso da sua mulher?
Ele olhou para o céu com os olhos brilhando e sorriu.
- Enquanto eu lhe contava essa história em qual pessoa da sua vida você estava pensando?
Ela observou o rádio com atenção e lembrou-se.
- Meus pais.
O sorriso dele aumentou.
- Sou um contador de lições, menina, apenas um contador de lições...

quarta-feira, 19 de maio de 2010

3ª Pessoa do Singular

Foi num dia prateado de inverno que o céu tomou um pingo de misericórdia e abriu uma brecha ao Sol, enquanto ela estava deitada no parque, com seu vestido vermelho cor-de-verão que contradizia com todo o restante da paisagem. A moça não pretendia ficar ali deitada, mas seu corpo, sedento por calor, arrastou-a automaticamente até a grama gelada e jogou-a no verde claro, enquanto a luz quente do Sol penetrava aliviosamente em sua pele.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

diacetilmorfina

- Alô?

- Oi amor. Sou eu.

-...

- Amor? Ta me ouvindo?

- To, mas não queria. Não quero falar com você.

- Não faz assim, amor. Não diz iss...

- Sei o que você fez ontem.

-...

- A Beth me ligou.

- E então? O que isso muda?

- Tudo.

-Por que tem que ser assim?

- Porque não quero acordar do lado de alguém com os braços furados.

-...

- Não ligue mais.

- Vamos nos encontrar! Vamos conversar...

- Amy, não. Por favor.

- Você sabe que eu não vivo sem você!

- Vive sim. Vivia bem com sua mãe antes de me encontrar.

- Mas você me mudou!

- Não jogue a culpa em cima de mim.

- Viva com isso, você que me apresentou este mundo.

- Mas eu soube sair dele.

- Você sabe que não. Você sabe que vai voltar de novo.

-... Adeus Amy.

- Amor?

- Hm?

- Eu te amo.

-... Adeus Amy.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Oito anos

Dava pra ver a silhueta dela através das lentes embaçadas de seus óculos. Parecia ainda mais perfeita àquela distância. O cabelo loiro e corrido que ia até os ombros, a pele limpa e macia, o corpo escultural... Cada mínimo elemento daquela mulher parecia estar em seu lugar. Não sabia seu nome, mas todo o dia parava em frente do café para vê-la tomar sua xícara. Ficava do lado outro lado da rua, com seus livros na mão, à espera que ela terminasse de beber e entrasse de volta no Peugeot 206 e dirigisse para algum misterioso lugar. Provavelmente seu trabalho, dado que isso ocorria todos os dias por volta das oito da manhã. Não parecia ter filhos, nunca atendia o celular enquanto estava dentro do estabelecimento, não usava aliança e nunca parecia preocupada. Apenas estes elementos eram primordiais para um cara qualquer ir dar alguma cantada ou tentar puxar uma conversa. Mas não para ele. Parecia que ter aquela imagem todos os dias de manhã já era suficiente. Há algum tempo atrás ainda validava em sua mente se devia ou não entrar lá e falar alguma coisa, mas essa idéia parecia ainda mais infantil do que sua verdadeira idade.
Mas neste dia em especial ela não apareceu. O miúdo virou seus grandes óculos para todos os cantos que seus 153 centímetros lhe permitiam, mas não conseguiu encontrá-la. Chegou até mesmo a entrar no café, para ver se por acaso sua mesa não pudesse ter sido mudada de lugar. Mas não. Estavam ali as duas cadeiras (uma sempre ficava com a bolsa apoiada para ninguém mais ocupá-la), estampadas com flores azuis e amarelas, completamente vazias. Não havia mais o que fazer. Andou para a escola com um semblante tristonho e foi ainda mais caçoado pelos colegas de classe. Normalmente, nessas horas, a imagem daquela serena mulher não o fazia perder a cabeça. Chegou a casa já chorando, lembrando já não dela, mas das gozações dos outros miúdos. Dormiu com as lágrimas secas ao redor dos olhos vermelhos.
No dia seguinte lá estava ela, a imagem que completava seu mundo, o seu pedaço de manhã, a sua janela, seu céu azul... E tudo parecia que ia ficar bem de novo.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Supermercado

Os finos e trêmulos dedos dela alinhavam meticulosamente as latas de atum. Era uma perfeccionista nata, e não negava. Talvez esse tenha sido o motivo de a contratarem para o serviço. Ou teria sido porque seu pai era primo do dono da loja? Nunca descobriria. Mas também não se importava tanto assim, o que valia era que estava trabalhando e ninguém poderia lhe tirar aquela sensação de no fim do mês tocar nos maços de dinheiro e sentir o prazer de pensar que era dela, e tão somente assim seria. Mas não pensava no motivo de ter sido contratada ou no dinheiro agora. Nem mesmo estava prestando atenção nas latas amarelas. Só conseguia focar seu cérebro para o jovem rapaz que estava na estante ao lado, organizando os molhos. Ele também olhava fixamente para ela, e a troca intensa de olhares podia ser sentida em quilômetros. Até mesmo os clientes que queriam esclarecimento de onde ficava algum produto não ousavam tocar-lhes e acabar com aquele momento.
Já fazia algum tempo que às vezes se olhavam dessa maneira, entretanto por um período curto de tempo. Era sempre ela quem desviava primeiro, com um sorriso meio pálido no rosto – não queria que ele visse que ela estava sorrindo. Na noite anterior a menina jurou em frente ao espelho que seria forte e ficaria olhando fixamente, até... Até... Não conseguiu definir até quando, mas daria seu máximo. E deu. O “até” esperou ao lado dela para surgir e acabar com aquilo. Mas nenhum dos dois lhe deu oportunidade por um bom tampo, até ela já não agüentar e olhar para baixo. Respirou com um momento, apertando uma das latas nas mãos até quase abri-la. Pressionou os olhos de tal maneira que, quando os abriu novamente, o chão havia mudado por alguns segundos de cor. O ladrilho ficou roxo, depois vermelho, levemente verde, até ficar branco novamente, na sua tonalidade original.
Conversavam às vezes depois do expediente. Ele arriscava tocar em seu braço de vez em quando, e sempre dava um marcante beijo em sua bochecha quando terminavam de falar e iam se despedir. Era inevitável não ficar vermelha e encolher os ombros. Mas nesse dia foi diferente. Ele perguntou se ela não queria companhia pra voltar pra casa. Não podia dizer não, mas estava extremamente envergonhada. Andaram em silêncio quase o caminho todo, de mãos dadas. Os dois sentiam o suor do nervosismo, mas não tinham ação nenhuma até chegarem a casa dela. Trocaram algumas palavras de agradecimento e, repentinamente, ele a puxou pela cintura quando a menina já umedecia os lábios, ele disse, não, ele gritou:
- Eu sou gay! – E a abraçou com um sorriso enquanto lágrimas desciam de seu rosto.
Ela chorou dias, sim, chorou semanas afim! Demitiu-se do trabalho, trancou a faculdade, se distanciou dos amigos. Não havia dito a ninguém o motivo, nem mesmo a seu novo descoberto amigo. Não podia acreditar em como ele não percebeu a química que acontecia entre eles. Mas assim aconteceu, e assim seu sentimento morreu. E ninguém nunca saberia. Jurou a si própria.

Os finos e trêmulos dedos dele alinhavam meticulosamente as latas de atum. Era um perfeccionista nato, e não negava. Talvez esse tenha sido o motivo de o contratarem para o serviço. O que valia era que estava trabalhando e ninguém poderia lhe tirar aquela sensação de no fim do mês tocar nos maços de dinheiro e sentir o prazer de pensar que era dele, e tão somente assim seria. Mas não pensava no motivo de ter sido contratado ou no dinheiro agora. Nem mesmo estava prestando atenção nas latas amarelas. Só conseguia focar seu cérebro para o jovem rapaz que estava na estante ao lado, organizando os molhos.

A Janela

Queria ter uma janela. Uma dessas velhas, feitas de madeira e bem coloridas, pra que eu pudesse regar do lado de fora flores vermelhas, laranjas e amarelas. Queria me debruçar sobre ela e sentir medo de uma farpa arranhar meu braço, ou de que a tinta desgastada agarrasse na minha blusa branca.
Queria poder olhar olhar para baixo e somente me sentir segura quando segurasse fortemente na borda da madeira, e queria olhar pra cima e ver o céu azul no fundo com as nuvens brancas movendo-se ao seu relevo, e desejar que a janela voasse e me levasse para o além.
Queria ter uma para no inverno, enrolada numa coberta e tomando chocolate quente, pudesse cautelosamente retirar minha mão do seguro e desenhar um boneco de neve no vidro. E depois, com o vapor da minha boca, desfazer tudo isso e desenhar novamente a mesma coisa, até ter idéia de algum outro desenho.
Queria para namorar em frente a ela e contar meus segredos mais escondidos para o vento.
Queria ter uma janela. Uma dessas velhas, feitas de madeira e bem coloridas, pra que eu pudesse regar do lado de fora flores vermelhas, laranjas e amarelas

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Cartas

Entre as miúdas e trêmulas letras que formavam infantis palavras eu conseguia enxergar meu passado. O tempo me trazia como presente uma nostalgia. Era engraçado perceber o processo de crescimento mental de uma pessoa. Tratava-se da minha filha, que divinamente herdou os dotes poéticos da mãe, e desde muito miúda, na verdade, desde que aprendeu a ler e escrever, pegava um pequeno caderno rosa e transmitia-o todos os seus pensamentos, através de sua pomposa caneta da Hello Kitty. De início as frases eram quase imperceptíveis, com as linhas uma em cima das outras.
Essas páginas cor-de-rosa me traziam memórias do meu passado porque eu era exatamente da mesma maneira quando pequena, mas, ao contrário da minha pequena Amy, não tive nenhum tipo de incentivo. Quando minha mãe encontrava meus segredos traspassados em letras, tratava logo de amassá-los e jogá-los no lixo, junto com meus sonhos.
Queria ter tido a vida que dei a Amy, mas sempre fui grata pela oportunidade de ser diferente da minha mãe.
Desculpa pelo papel estar seco, amor. É que escrevo isto chorando, e penso que até essa folha chegar a você o papel já não estará da mesma maneira. E se as lágrimas borrarem alguma coisa peço-te que não me ligues para esclarecimento. O motivo é que já não posso ouvir sua voz. Você sabe o que me lembra. Também não me escreva, nem me leve a mal por pedir-te isso.
Amo você, amo suas palavras.
Simplesmente não consigo acreditar que ela se foi...